sexta-feira, 16 de outubro de 2009

SOBRE O TÁIN BÓ CÚAILNGE (3) - AUTOR E OBRA: algumas aproximações e críticas literárias à Táin

AUTOR E OBRA: algumas aproximações e críticas “literárias” à Táin

A “literatura heróica” trata-se de um “gênero” literário peculiar, cujas regras não precisam, não podem ou não devem coincidir com a realidade. Seu caráter fantástico não as torna plausíveis nem ao menos de refletir diretamente a realidade social dentro da qual foram concebidas. No entanto, como observado por M. Redfild, “as narrativas devem se confirmar suficientemente à realidade social para que sejam inteligíveis à suas audiências”.
Assim, como diz David N. Wilson em sua dissertação Honor and Early Irish Society: a Study of Táin Bó Cúlainge:
“eu argumento que as narrações não eram intencionadas apenas como mero entretenimento, mas como instrumentos de transmissões de valores culturais. Elas formavam parte do método de transmissão cultural de valores e atitudes. A arte pode dirigir a vida: Cúchulain estaria contente em ter apenas um dia e uma noite no mundo desde que minha fama e meus feitos vivam depois de mim (Táin II, 164). Contudo, seus feitos podem viver apenas nas estórias, poemas ou nas músicas. Cúchulain estaria representando a visão de fama e renome de sua cultura, ainda que de uma maneira extrema. O impacto cultural nas narrativas era para reportar e moldar comportamentos. Os reis, a nobreza e os guerreiros da Irlanda Medieval, se comportavam como se aceitassem os valores e atitudes dos épicos heróicos? Parece que sim.
Na Irlanda Antiga e Medieval era esperado que os reis liderassem suas tropas do front e muitos morreram em batalha”.
Nós aceitamos a mesma posição e procuraremos explicar como, embora a construção da narrativa da Táin Bó Cúailnge tenha sido um processo gradual, ocorrido provavelmente durante cinco séculos, através dos quais diversas camadas extras de valores sociais, eventos históricos e preocupações ideológicas diferentes tenham sido adicionadas ao texto original; ele ainda mantém valores e posições mais arcaicas em sua estrutura, sobretudo no que se refere à versão que escolhemos para este estudo, a Táin II, pois ela representa o ápice de um processo pelo qual esses mesmos valores tradicionais vêm sendo ameaçados e portanto, precisavam ser registrados.
Com esse intuito, iremos elaborar uma aproximação crítica e literária a esta narrativa para, em um primeiro momento, identificar suas estruturas e valores fundamentais e, em seguida, comparar estes mesmos elementos com o período histórico no qual foi elaborada, buscando então identificar quais são as percepções que seu autor poderia ter da realidade social e política em que vivia e que valores poderia estar defendendo.
Numa breve análise, vemos que a estrutura literária apresentada pela Táin II deixa explícita a existência outras duas audiências da narrativa; primeiramente, na audiência interna, ou seja, as personagens da narrativa, para as quais as ações heróicas são realizadas e, sem as quais (como quando uma personagem está sozinha na narrativa), existe a possibilidade existe uma ação que esteja em desacordo com os valores sociais vigentes.
Isso se explica na medida em que a sociedade céltica estaria fundamentada em estritos códigos de conduta, os quais eram responsáveis por determinar o valor ou preço da honra. A honra é um conceito muito complexo, que varia de sociedade para sociedade, mas que está ligado a noções de respeito, reverência, riqueza e posição social, todas elas informadas através da tradição, respeitadas e reguladas por um consenso social.
Trata-se de um mecanismo de controle empregado por sociedades que não possuem um sistema de coerção instituído, servindo para regular as ações dos indivíduos, ao menos na esfera pública. Sociedades assim constituídas são complexas e se inscrevem e se organizam em torno de sistemas jurídicos muito elaborados, que determinam as atitudes necessárias ao indivíduo de acordo com suas riquezas e posição social.


Se respeitadas, essas atitudes demonstram reciprocidade do indivíduo em relação à sociedade, e acarretam em seu respeito e na elevação do nível de honra do indivíduo. Se não observadas as posturas necessárias a sua posição, o indivíduo rompe com o pacto social e vê sua honra diminuída, podendo ser alvo de pedidos de restituição por ofensa ou punições ainda piores.
Sociedades como estas são conhecidas como “sociedades baseadas em honra”, e uma das principais características de tais sociedades é a mobilidade social. Ao observar as instituições da Irlanda Medieval e Antiga e a preocupação em determinar quais as ações apropriadas a um indivíduo nas recolhas jurídicas como Senchur Már e, sobretudo sobre as complexas elaborações à respeito dos preços da honra, podemos afirmar que essas instituições se baseiam em preocupações de uma sociedade de honra.
A “segunda audiência” é aquela representada pelos ouvintes da narrativa, contemporâneos do momento em que está sendo recitada, os quais estariam mais interessados nos problemas éticos e psicológicos enfrentados pelas personagens em busca de balancear sua honra pessoal e suas obrigações sociais, sem dar muita importância aos motivos pelos quais esses conflitos ocorrem, e à qual essa narrativa pretende transmitir valores sociais e ideológicos.
Outro elemento muito marcante, presente na Táin II, é o colofão em latim, escrito por seu autor logo após o término da narrativa, merecendo uma atenção mais aprofundada. Esse calofão foi alvo de debate realizado por um artigo escrito por Pádraig O’ Neill, ao qual procuraremos esclarecer aqui, e então acrescentar nossa próprias percepções acerca dessa passagem:
“Sed ego qui scripsi hanc historiam aut uerius quibusdam fidem in hac historia aut fabula non accommodo. Quaedam enim ibi sunt praestrigia domonum. Quaedam autem figmenta poética. Quaedam similia uéro. Quaedam non. Quaedam ad delectionem stultorum”
Uma primeira interpretação dessa passagem poderia nos remeter a um critério medieval de mente estreita e intolerante à tradição pagã. No entanto, uma explicação dessas não condiziria com a verdade, especialmente ao lembrarmos as “filiações ideológicas” de seu autor. Além disso, sua extensa preocupação em compilar por mais de 50 anos de sua vida, os épicos que constituem o Livro de Leinster, no qual organizou as narrativas, estendeu as genealogias e preencheu lacunas providenciando pontos de ligação entre trechos importantes dos textos, demonstram um mínimo de respeito pela tradição literária a qual dedicou seus esforços.
Então, o que o teria levado a escrever esse calofão? Segundo Ó Neill:
“O julgamento da Táin foi baseado não em critérios eclesiásticos, mas em critérios retóricos. Um tal critério estava em sua mente como é indicado ao final do calofão, ad delectationem (stultorum), o qual relembra um dos objetivos declarados da retórica, deleitar o ouvinte. Mas eles são claramente revelados na terminologia retórica a qual ele usa para caracterizar certos outros incidentes da Táin como simila/non simila uero; e novamente quando ele debate se deve categorizar o trabalho como história ou fábula. Todos esses termos pertencem ao vocabulário teórico.”
Essa posição se evidencia ainda mais pela forma como o colofão foi escrito: após o término da narrativa da Táin, toda realizada em gaélico, Áed pula algumas linhas e inicia essa passagem em latim, usando um parágrafo bem demarcado, com caractere capitular decorado. Isso poderia atender a dois objetivos: primeiro, justificar a validade de seu trabalho perante as autoridades eclesiásticas, agora intolerante à tradição oral de fundo pagão, que contava com seu próprio colofão ni início do texto: “ Uma benção a cada um que fielmente memorizar a Táin como ela aqui está escrita e não adicionar nenhuma outra coisa à ela”, apelação esta que nos sugere que já não havia mais garantias, do século XII em diante, que houvesse uma fiel transmissão destas tradições.
Segundo, o colofão em latim serviria para demarcar não um distanciamento religioso, mas sim um distanciamento mental, de tradições literárias e de pensamentos retóricos. Provavelmente ele assim fez,para distinguir este comentário pessoal do público em geral, ou para garantir que apenas aqueles que fossem versados em latim pudessem lê-lo. Como a cuidados das narrativas e genealogias do Livro de Leinster, a adição de “pontes” que ligam estas narrativas e a forma cuidadosa e elaborada como seus caracteres foram gravados, nos sugere que Áed tratava-se mais de um estudioso e sabido do que copista profissional.
Outro ponto fundamental a debater a respeito dessa passagem refere-se dúvida do debate em classificar seu trabalho como história ou fábula. Isso se deve ao motivo de que já era tradição instituída e suportada pela igreja, ligar eventos mitológicos a eventos bíblicos para afirmar a descendência cristã dos habitantes da Irlanda, os quais eram transcritos nos vários anais Irlandeses. Áed teria encontrado diversas formas de suporte nestes anais, que sempre foram elaborados por instituições monásticas e, em especial, nos anais de Leinster, para justificar coerentemente sua posição de classificar a Táin como história, assim como o fez com a Tógail Trói, sua versão para a Guerra de Tróia contida no Livro Leinster. E também não devemos nos esquecer do julgo normando em Leinster, à época da conclusão da Táin, que ao exemplo da Igreja Irlandesa, tornava-se cada vez mais intolerante à existência de tais relatos.
Assim, nós argumentamos que, sendo Áed o historiador chefe de Diarmait Mac Murchada e Abade de Tí Dá Gláss, podemos concluir que além de ter tido uma longa educação formal, latina, muito provavelmente pertencia a nobreza, tendo sido indicado por seu rei para ambos os cargos que ocupava.
Seu intuito, com esse colofão era, aos nossos olhos, muito mais que demarcar um distanciamento “mental”: era sim, buscar uma forma de se proteger de possíveis reações eclesiásticas à sua obra, ou a represálias por parte de algum rei E em especial a um rei normando), que se pudesse identificar com as figuras da narrativa, caso essa fosse classificada com história.
É por esse motivo também que argumentamosque, a figura cujas características mais marcantes de desonra, deslealdade e incompetência, é a da rainha Medb; salvo poucas exceções (e uma delas da dinastia Ú Néill, como discutiremos em outro artigo), poucas mulheres foram citadas nos anais ou ocupando algum papel de preponderância nas narrativas cristianizadas. Ao fazer isso, Áed teria garantido que nenhum rei da época se identificasse com os atributos negativos da realeza apresentados por ele, ainda que demonstrasse claramente quais eram suas percepções acerca da soberania através de Medb e outras personagens e eventos da Táin.

Continua...

2 comentários:

  1. Cara Hyllanna, estou profundamente encantado com teu blog. Não esperava encontrar, em língua portuguesa, uma coletânea tão ampla de informações sobre os celtas. Tenho lido os textos postados por ti desde o início. Estou surpreso sobre como o mfodo de pensar e sentir (em vez de "pensar", já que os celtas possuíam mais uma percepção sensitiva do mundo do que analítica) desse povo se afina com meu próprio pensamento, meus interesses ao longo da vida e meu modo de me expressar.
    Sinto-me grato de poder lê-lo. Que a Mãe Terra te guie em teu caminho!

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  2. Fico muito feliz em saber que alguém aprecia meu trabalho. Obrigada pelas palavras carinhosas e pelos elogios. Esse blog é dedicado às pessoas que, assim como voce, possuidoras de sensibilidade suficiente conseguem compreender o caminho onde o fascínio e os mistérios da irresistível cultura celta se encontram.
    Portanto, esse blog é seu. Um abraço carinhoso;
    Hyllanna Von Vandenberg

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