Durante o longo de sua história, a ilha da Irlanda é um personagem fundamental a moldar fatos, eventos e o destino daquelas terras e dos povos que a têm habitado e, é justamente por isso que agora trataremos a Irlanda como um ser vivo; não faremos uma abordagem meramente histórica, fria e pautada em datas e fatos: o que faremos é entender de que forma as terras e paisagens irlandesas - o seu Corpo - influenciam na formação da identidade cultural da Irlanda - a sua Alma.
Como Nasceu a Irlanda
Antigamente, a Irlanda estava ligada à Grã-Bretanha e ao continente europeu por uma "ponte" de terra, tornando-se uma ilha após o final da Era Glacial, por força da elevação dos níveis das águas marinhas.
Podemos supor então, que o clima da época era bastante frio, e as espécies animais e vegetais que se desenvolveram na região nesse primeiro instante eram típicas das áreas mais frias. Somente com o gradual aquecimento do clima é que outras espécies, mais adaptadas a climas temperados, migraram para a Irlanda - entre elas, os primeiros humanos.
Esses 'imigrantes' primitivos formam a primeira manifestação da alma irlandesa.
Os Primeiros Habitantes Humanos
Frágeis vestígios de ocupação humana que foram encontrados na Irlanda remontam ao período mesolítico, cerca de 10.000 anos atrás. Eram caçadores-coletores que atravessaram os braços de mar que já então separavam as Ilhas Britânicas do continente europeu. O que teria levado esses pequenos grupos de aventureiros a essa aventura só podemos especular - mas podemos afirmar que eram pequenas comunidades ainda sem conhecimentos agrícolas, que viviam da caça de animais pequenos, porcos selvagens, aves e peixes, estabelecendo-se em grupos de tendas simples e espalhados escassamente pelo território irlandês.
A esta altura, porém, as terras irlandesas já abrigavam indivíduos de outra espécie, talvez tão importante quanto a humana a julgar por sua presença constante nos mitos e lendas da Irlanda através das eras: as Árvores.
As Pioneiras da Irlanda
Durante o aquecimento pós-glacial (Littletonian), sementes carregadas pelos ventos ou levadas por animais aquáticos trouxeram à Irlanda as pioneiras bétulas, olmeiros, carvalhos, aveleiras, e salgueiros que, mais tarde, desempenhariam papéis fundamentais na mitologia e nos ensinamentos dos celtas irlandeses - como o misterioso 'alfabeto' ogham, por exemplo.
Essa flora variada e o clima estável criou a paisagem ideal para o estabelecimento dos primeiros humanos poucos séculos depois, e esses primeiros humanos irlandeses têm uma primazia sobre seus vizinhos britânicos: é na Irlanda - mais especificamente em Mount Sandel, Co. Derry - que se encontram os mais antigos vestígios de construções humanas, na forma de habitações circulares de madeira: os primórdios da sedentarização, as primeiras interações entre humanos e paisagem na Irlanda.
Podemos nos maravilhar com a fantástica imagem dessas primitivas casas de telhados cônicos recortando a verdejante paisagem da Irlanda primitiva, seus habitantes empenhados no preparo das carnes dos animais abatidos, suas vozes entoando as primeiras canções e ressonando as primeiras palavras ditas por humanos em terras irlandesas, numa língua hoje perdida...
A estagnação no processo de desenvolvimento dos instrumentos líticos num longo período de 3.000 anos parece ser fruto do isolamento em que esses primeiros irlandeses viviam com relação às outras populações humanas na Grã-Bretanha e na Europa.
Assim, como para por fim a essa estagnação, houve a chegada dos primeiros agricultores e construtores das impressionantes estruturas megalíticas que salpicam todo o território irlandês.
Os Primeiros Fazendeiros e as Maravilhosas 'Catedrais' Pré-Históricas
Antes da chegada dos primeiros povos neolíticos à Irlanda, os habitantes primitivos deixaram pouquíssimos registros de sua presença - como mortais nos nossos primeiros anos de vida, a Irlanda tem poucas memórias de sua infância. Mas esse cenário muda dramaticamente em meados do quarto milênio a.e.a. com a primeira onda de derrubada de árvores em grande escala, para a criação de plantações e pastagens por uma cultura recém-chegada.
Esse povo trazia consigo as evoluções de mais de três mil anos de técnicas de desflorestamento e plantio, desde o surgimento da agricultura, no Oriente Médio.
É aqui que a Irlanda recebe mais dois de seus mais ilustres e mitológicos habitantes: os suínos e os bovinos, trazidos pelos fazendeiros neolíticos - esses animais virão a ser centrais em muitas das sagas e lendas dos celtas da Irlanda, como os importantes "Táin Bó Cuailgne" ("O Roubo do Gado de Cooley") e "Scélla Mucce Meic da Thó" ("A História do Porco de Mac da Thó"): gradativamente, o espírito da Irlanda vai ganhando forma diante de nossos olhos.
Habitações em madeira, florestas derrubadas, planícies férteis transformadas em plantações e pastos: é impossível ler estas informações do desenvolvimento da Irlanda sem remeter aos relatos contidos no "Léabhar Gabala na hEireann", o famoso "Livro das Invasões da Irlanda", tratado por muitos como 'pesudo-história' mas que, cada vez mais, se mostra um relato bastante acurado - ainda que mítico - de fatos reais...
Reconstrução de casas neolíticasàs margens do Lough Gur, Limmerick
Mas as maiores contribuições do período neolítico para a formação da identidade da Irlanda surgiriam algum tempo depois: as estruturas megalíticas de Brú na Bóinne (Newgrange), Dowth e Knowth, no Vale do Rio Boyne. Newgrange (Irlandês: Dún Fhearghusa) , aliás, é impressionante em sua grandiosidade e magia.
É uma tumba do Conjunto Arqueológico do Vale do Boyne, no Condado de Meath, na Irlanda. Um dos mais famosos sítios pré-históricos do mundo e o mais famoso da Irlanda.
Newgrange foi construído de modo que, ao nascer do sol do dia mais curto do ano (solstício de inverno), um fino raio de sol ilumine por pouco tempo o piso da câmara no final de um longo corredor.
Foi construída originalmente entre 3300 e 2900 AC, mais de 500 anos antes da Pirâmide de Quéops no Egito. Também precede Stonehenge em mais de 1.000 anos.
No período Neolítico, Newgrange continuou como um local de cerimôniasmas ao que parece pode ter sido usada principalmente como uma tumba pois foram encontrados restos humanos cremados de cinco indivíduos.
O sol parece ter sido um important elemento nas crenças religiosas do Neolítico.
O alinhamento solar em Newgrange é ainda muito preciso se comparado a outros fenômenos, tais como o que acontece nas Ilhas Órcades, perto da costa de Escócia.
De acordo com a Mitologia irlandesa, Newgrange era um dos Sídhes (montes) onde Tuatha Dé Danann vivia.
Foi construído pelo deus Dagda e de acordo com a lenda, o herói Cú Chulainn nasceu lá. Contudo, a maioria dos ciclos místicos associados com Newgrange datam da era Céltica da mitologia e da História da Irlanda.
O acesso ao local é feito a partir do Condado de Meath.
Acima, Newgrange - ao lado, a colossal estrutura de Knowth (Vale do Boyne)
Ao vistar estruturas desse porte, dessa magnitude e de tamanha precisão matemática e astronômica, percebemos que seus construtores dispunham de um dos mais mágicos ingredientes que uma pessoa pode encontrar em sua vida: senso de propósito. Ao tocar as imensas pedras que compõem a galeria interior de Newgrange, ali posicionadas há praticamente seis mil anos, tive por seus idealizadores e executores um respeito e uma admiração que me trouxeram lágrimas aos olhos. Basta imaginar uma verdadeira montanha artificial projetada e construída por pessoas de forma que a entrada de sua galeria interior esteja perfeitamente alinhada ao nascer do sol num dos mais significativos dias para praticamente todos os povos da Antigüidade - o Solstício de Inverno, a noite mais longa do ano, em que as forças da luz e da vida começam a retornar e a derrotar a escuridão e o frio. Não bastasse Newgrange, não muito longe dali temos a ainda maior estrutura de Knowth, sem contar os inúmeros dolmens, cairns e colinas ocas espalhadas por praticamente toda a Irlanda. Essas estruturas são os equivalentes neolíticos das catedrais góticas erigidas na Idade Média na Europa continental - ambas causam maravilhamento por sua grandiosidade, pelo senso de própósito de seus construtores e pelo profundo componente espiritual que motivou suas construções - envolvendo centenas, talvez milhares de pessoas ao longo de vastos períodos de tempo para que suas crenças e anseios dotassem a paisagem de uma forma ao mesmo tempo divina e mundana - como tudo na Irlanda, aliás.
Círculo de Pedras de Drombeg, Co. Cork
Esses monumentos megalíticos são o testemunho silencioso dessa cultura que tão bem trabalhava a terra, domesticando e criando animais com grande sucesso, interagindo com a paisagem em que vivia, transformando-a, sacralizando-a. Desde a mais remota Antigüidade, as terras da Irlanda sempre se mostraram plenas de vida e magia aos humanos que sobre ela caminhavam.
Prova disso é o fato de que, ao chegar à Irlanda, os celtas - essa cultura tão rica e vigorosa - não só absorveu como desenvolveu a sacralidade atribuída a esses locais tão mais antigos que eles próprios: muitas dessas estruturas foram incorporadas às lendas de deusas e deuses - a própria Newgrange é descrita como sendo a morada do Dagda, o "Bom Deus" dos celtas irlandeses. Através de sua paisagem, a alma da Irlanda ganha uma voz mais forte, que é ouvida e acolhida pelos celtas em sua Era Dourada.
Carrowmore (Irish: Ceathrú Mhór) é um dos quatro grandes cemitérios com túmulo de passagem na Irlanda. Está localizado no centro da paisagem ritual pré-histórico de Knocknarea ou Cúil Irra Península em Sligo, na Irlanda. Hoje em dia podem ser vistos cerca de 30 túmulos megalíticos em Carrowmore.
Túmulo megalítico de Carrowmore, Sligo
Muito interessante.Adorei.
ResponderExcluirParabén pelo Blog!
ResponderExcluirSó quem conhece a Irlanda para ter este sentimento.
E um país mágico, onde as paisagens e os lugares tem um que de místico!
Regina